PENSAMENTOS MORTAIS
Vitório abriu a porta, passou revista pelo
interior da casa só depois é que entrou, numa passada incerta e vagarosa.
A casa, pequena e simples, estava como sempre
a vira, arrumada e limpa.
Vitório arrastou-se até à cozinha, manco
como nascera e trôpego porque bebera e pousou sobre a mesa a garrafa de vinho
que lhe dera o Manel da Tasca do Quelho. O corpo pesava-lhe, fez um esforço
danado para retirar um copo do armário e foi sentar-se arreliado, acreditando
que o mundo inteiro conspirava contra ele. Não bastava ter nascido manco e
pobre, sem pai nem sortes para o alinhar na vida.
O trabalho na estufa do Sôr Maurício era duro, arruinava-lhe o corpo e endemoninhava-lhe a cabeça com o capataz a morder-lhe os calcanhares.
Às vezes gerava-se dentro dele tamanha onda
de revolta que só lhe dava vontade de o arrumar de vez. O que o travava era o pavor que
tinha à prisão. O irmão morrera nela.
Findo o trabalho, Vitório gostava de parar na Tasca do
Quelho. Fosse pelo vinho ou por estar entre os amigos, lá, os pensamentos maléficos
que o atormentavam, dissipavam-se.
Mas quando chegava a casa, era
como se libertasse o Demónio que há muito se lhe alojara no interior da carcaça.
Um Demónio que lhe atazana o juízo, assoprando-lhe ao ouvido:
«Vitório,
tens uma vida de merda! Só trabalho, trabalho, e mais trabalho, para quê? Tens
uma mão cheia de nada!
O Manel
da Lorca ainda se safa, os pais ajudam-no. O Luís da Ranha é corno, mas a
mulher tem pai que é rico. O Zé fuinha esteve em França, a esse tudo lhe corre
de feição. Só tu, meu labrego, é que te esmifras a trabalhar e não és dono de nada!
Até a Laila faz de ti o que quer. Já agora, sabes onde ela paira?»
Vitório ergueu-se para dar uma volta pela
casa. Encontrou tudo no devido lugar. Gavetas arrumadas, nenhum talher por lavar,
nenhuma peça de roupa por engomar, nada estava fora do sítio…O Demónio alertou-o:
«Não
passas dum tolo! És um mouro de trabalho enquanto a Laila goza a vida. A casa
mantem-se por si, que tem ela para fazer? Nada! Como é que a vida pode correr-te
bem?»
Vitório reparou na cama que estava composta com a colcha
de renda que Laila andara a fazer meses a fio, após o jantar. Porém, o Demónio
alertou-o para coisas que por sua cabeça jamais atingiria.
«Abre os olhos Vitório! Para estas porcarias
tem ela jeito, mas não, para focinhar na terra como tu! Laila não passa duma vadia!»
Vitório regressou à cozinha para emborcar mais
um copo. O vinho era morangueiro, mas se fosse um Pera Manca teria o mesmo sabor. Vinho é vinho, a qualidade era de
somenos importância para um sujeito na sua condição, só queria relaxar o corpo e anestesiar-se das amarguras da vida.
O Demónio voltou a espicaçá-lo:
«O
Manel da Tasca do Quelho mantem a mulher com a rédea curta. A Anastácia obedece sem regatear, ao passo de que a tua está sempre a
protestar. Protesta por tu gastares dinheiro na taverna. Que tem ela a ver com o
dinheiro que ganhas com o teu suor?
Abre os
olhos Vitório! Se tu lhe dás pouco dinheiro, como é que entra boa
comida nesta casa? O queijo ela te dá ao pequeno-almoço é
caro, tal como o pão com passas de que tu tanto gostas, assim como o toucinho
fumado.»
— Ela trabalha nas limpezas em casa duma
madame, lá para os lados do Ribeiro Seco.
«Disse-to
ela, mas tu nunca te importaste em saber, se era verdade.»
O sino da aldeia tocou, Vitório olhou de
relance o relógio pendurado na parede da cozinha. Tinha a vista turva, o
ponteiro oscilava entre as sete e as oito, ficou na dúvida. De qualquer das
formas, a Laila tinha obrigação de já ter chegado.
«Já
reparaste de que a Laila ultimamente anda a vestir-se melhor? Não te faz pensar em nada?
Até os teus amigos sabem de como as mulheres são manhosas. Tens o exemplo do
Luís da Ranha, que não sabe que a mulher tem um caso com o dono da funerária.»
— Não! A Laila não será
mulher para isso! Até porque tenho
amigos que me avisavam.
«Claro
que avisavam, tal como avisaram o Luís da Ranha. Tu sabes de que a Leila não é
mulher de se deitar fora e gosta de se exibir na frente dos homens. Ou será que
nunca reparaste?»
— Admito que ela é jeitosa mas daí…isso não, porque eu
matava-a! Não aceito ser corno manso como o Luís da Ranha! Matava a cadela!
«Não
achas estranho a Laila estar a demorar tanto? Se Laila te andar a enganar, podes
crer que ninguém to dirá, mas rir-se-ão nas tuas costas. Não permitas isso!»
— Cala-te maldito! Eu não acredito que ela me engane! Mas se for verdade, podes crer de que a mato!
Vitório de repente calou-se, o ruído da porta
a abrir-se e a aproximação de uns passos ligeiros não o enganavam. Laila
entrara em casa.
— Por onde andaste, minha cabra? — Atirou furioso.
Laila pousou calmamente o saco das compras sobre a bancada, antes de protestar::
— Outra vez bêbado, Vitório? Não tens juízo,
valha-me Deus!
Vitório explodiu:
— Por que é que só chegaste agora?
— Por causa da teimosia da Dona Beatriz.
Hoje, deu-lhe para não
querer a sopa, por isso cheguei mais tarde.
— Julgas que eu sou lorpa? Disseste-me que
trabalhavas em limpezas e agora vens-me com uma história diferente?
— Eu não te avisei de que à Sexta passava a cuidar
da Dona Beatriz? Tenho que apanhar todos os trabalhos que me aparecem, porque
se contasse apenas com o teu dinheiro, passámos fome!
— Andas-me a pôr os cornos?
— Que disparate é que tu estás para aí a dizer,
homem? Cala-te!
— Tu não sabes do que eu sou capaz!
— Sabes que mais? Vai-te deitar um bocado
enquanto preparo o jantar.
Mas o Demónio decidiu sair vencedor naquele
fim de tarde.
«És um
frouxo! Vais deixar que ela continue a enganar-te? Não fazes nada, corno?»
— Não sou frouxo, nem admito ser corno!
— Eu não disse nada Vitório. Vê se te acalmas,
homem!
— Tu queres que eu me acalme? Queres?
Então, já vais ver!
A raiva atravessou-lhe os olhos e a
desconfiança feita certeza deu-lhe força suficiente para ir atrás da porta e pegar na
caçadeira que mantinha sempre carregada, para no caso de ser assaltado.
Laila olhou-o com surpresa que de imediato se
transformou em terror:
— Estás louco Vitório? O que é que tens na
cabeça?
— Ainda perguntas?
— Desvia a arma para lá, Vitório! Estás
louco?!
— Estou louco, sim! Louco para acabar
contigo, porque tenho vergonha na cara!
Laila não teve como escapar, o primeiro
disparo atingiu-a no peito, o segundo estoirou-lhe o rosto.
Depois disto, Vitório sentiu um estranho
estremecimento dentro de si e de seguida, um forte sopro saiu-lhe pela boca.
Ficou com a sensação de que o Demónio que há muito se habitava nas suas entranhas
acabara de o abandonar.
Aliviado, baixou a arma e de cabeça vazia e
olhos inquietos pasmou a observar um lago vermelho a alastrar-se pelo chão e a
entranhar-se nas ranhuras dos mosaicos, como água a inundar as valas que ele abria
na estufa do Sôr Maurício. Na brancura da parede os arabescos vermelhos pareciam
serpentes a deslizarem indolentemente por ela abaixo. Os salpicos lembraram-lhe as papoulas do
campo varridas pelo vento.
De um momento para o outro, o mundo pintara-se
de vermelho. Havia vermelho no chão, nas paredes, nas botas, na espingarda, nas
mãos…
Apavorado, largou a arma e arrastou os pés
em direção ao quarto, convencido de que tudo aquilo fazia parte dum pesadelo, e que bastava passar
um pouco pelas brasas, para tudo voltar ao normal.
Até porque Laila estava a chegar e ele não queria
que ela o visse naquele estado.
Mas Vitório não saiu mais do pesadelo, e na manhã
seguinte a aldeia acordou em alvoroço perante tamanha barbárie. Os vizinhos e os amigos
ficaram chocados com a atitude
macabra de Vitório. Deitar-se a dormir após matar a mulher e comentavam, consternados:
«Eles davam-se bem, nada fazia prever esta
tragédia.»
«Não se faz isto: matar a mulher e deitar-se a
dormir.»
«Ainda ontem lhe dei uma garrafa de vinho, se eu adivinhasse...»
«A Laila queixava-se que ele bebia muito, mas que
não a tratava mal.»
«Coitada, ainda ontem esteve a cuidar da Dona
Beatriz.»
«De manhã engomou-me uma carga de roupa, só
visto!»
«Tenho pena, porque eram ambos boas pessoas»
«Parece obra do Diabo!»
Maria de Fátima Gouveia