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Castanheira de Pera, Portugal
"O Meio-termo é a virtude dos mentecaptos lobrigando a sua incapacidade de tocar o excelso".

domingo, 25 de janeiro de 2015


                              

MARIA JACINTA

Maria Jacinta era o seu nome, acrescido de um apelido que não se encaixava na sua carnadura redonda e compacta: Fino.

Maria Jacinta Fino pisava diariamente o mundo da lua. Seus olhos, pequenos berlindes negros e reluzentes, vidravam quando se punha a sonhar com o fogoso príncipe que um dia viria salvá-la das infindáveis pilhas de louça a que estava condenada a lavar, na cozinha da tasca da dona Custódia.
Um nicho pavimentado a mármore polido, onde qualquer pingo de água, fazia com que Maria Jacinta batesse com os costados no chão.
Maria Jacinta, abominava lavar pratos. Aquele trabalho não combinava com um espírito apinhado de delicadezas, como o dela. O que ela gostava, mesmo, era de comer e dançar. Tudo o resto, era uma canseira.
Maria Jacinta era obesa, havia quem dissesse que ela pesava uma tonelada, um exagero. A rapariga tinha pouco mais de cem quilos. E era quase bonita, caso não tivesse os dois dentes da frente partidos, e uma verruga, mesmo na ponta do seu nariz grosso.
O buço era coisa insignificante, não chegava a bigode. Para rematar; uma voz fina e doce como o melaço.
Mas, desgraçadamente, Maria Jacinta não tinha quem a quisesse, a não ser o Gracindo Perneta. Um pau de virar tripas, zarolho e ainda por cima coxo que se perdera de amores por ela.
— Desce à terra, Maria Jacinta — dizia a irmã, que era o oposto dela. Desengonçada e magra como um galgo de corrida. — Quem mais te irá querer, senão o tonto do Perneta? Pode não ser bonito, mas possui um tecto, rebanhos de cabras e terras a perderem-se de vista e mulher  no cemitério.  
— O meu príncipe há-de chegar — dizia Jacinta rebolando os olhos pelo sonho.
De imediato estalava uma risota geral no tasco. Por entre as gargalhadas, alguém gritava: «Maria Jacinta, pareces um barril com pernas, o melhor, é esperares por um tanoeiro!»
E o tanoeiro chegou, com a encomenda da dona Custódia. Três barris trazidos por dois homens, Um gordo e um magro. O magro era o Toino Carago, que toda a gente conhecia naquela região. O gordo, o tanoeiro, era de outras paragens.
— Remberto Duque, um amigo ao dispor. — Disse ele, estendendo a mão sapuda à dona Custódia, que nem soube o que fazer com ela.
«Duque?!»
Aquela palavra soou como uma martelada na mona de Maria Jacinta, que logo se encantou da tal figura, tão bem acolchoada de carnes como de boas fazendas. Um dente de ouro e um sorriso nas ventas.    
Maria Jacinta pensou: «Na falta de um príncipe, um duque vem mesmo a calhar. Solteira, não vou ficar!»
Saiu lampeira da cozinha com uma travessa de moelas na mão, ia tão agitada que trocou as pernas e estatelou-se ao comprido no chão.
Soou, nova risota geral, enquanto a pobre coitada, de cara atolada no molho, gemia envergonhada.
O duque apressou-se a ajuda-la a levantar-se, enquanto sussurra, enlevado:
— Dama tão bela e delicada, não é para ser criada. Se casares comigo, serás duquesa na terra da abastança. Não te faltará mesa farta, nem dança.
Maria Jacinta, ainda mal refeita do tropeção, correu à cozinha e numa euforia louca desatou a partir a louça, enquanto gritava:
— Acabou! Não vou mais lavar pratos! Vou casar! Vou casar!
De olhos esbugalhados, fixos no infinito, Maria Jacinta mergulhava as mãos sapudas na água e atirava os pratos para o chão. Uns atrás dos outros... Zás Pás, Zás Pás!
— De novo no mundo da lua, Maria Jacinta? — Berrou a Dona Custódia, enfurecida. — Vou descontar o prejuízo no teu ordenado!
Maria Jacinta despertou de repente e olhando ao seu redor assustou-se de ver tanto caco espalhado pelo chão. Do tal Duque, nem assombração.
Pelo buraco do postigo, Zé Perneta perguntou com um sorriso matreiro:
— Sonhando comigo, princesa?

MFG..  

                  





              



segunda-feira, 20 de janeiro de 2014



SAUDADE

Quem disse de que a saudade não mata?
Mata, suave e lentamente como um sopro gelado, como beijo de morte.
A mais triste saudade é provocada pela morte. Só que para nosso infortúnio tudo morre. Morre para nós, em nós e inclusive, nós.
Morre-nos o cabelo, o vigor, a ideia, a esperança… Morre-nos o dia, o ano, a família, o amigo…
O difícil da morte, não é o ato de morrer, mas o que deixa de existir depois dela. O buraco negro que nos mina por dentro, porque, o que nos é usurpado pela morte rasga uma brecha profunda no nosso espírito. Tão profunda que jamais o tempo a reparará. E ainda que olhemos o horizonte e sejamos invadidos pela poética ideia de vermos mais uma estrela a brilhar no céu, virá o momento em que a realidade nos tocará e nós, criaturas frágeis e com o vício de colecionarmos lembranças, abrimos o dique das emoções e soltamos o rio da saudade.
Mas, mais doloroso do que sentir saudade é não termos nada nem ninguém que nos faça sentir saudade.


MFG. 

sábado, 18 de janeiro de 2014

             A GERAÇÃO FORMATADA

Saem aos milhares das universidades, alguns encaixam-se de imediato no mercado de trabalho, outros nem por isso. Dos primeiros, alguns já nasceram afiançados, outros julgam-se talhados para o sucesso.
Inteligência, ousadia, ambição e falta de carácter, definem a geração formatada. Uma geração que prima pela aparência fria e irrepreensível, que segue um padrão comum de contacto: ausência de expressões corporais, silêncios incómodos e discursos assertivos para atingir os seus objetivos, indiferente aos estragos que possa provocar na vida dos outros.  
Atingidos os primeiros êxitos é-lhes dada carta-branca e eles aceitam infringir as regras julgando segui-las, na esperança de chegarem depressa ao topo, sustentando a ideia de que é possível tocar na porcaria sem sujarem os dedos.
Na sua verde experiência, ignoram de que aceitaram servir quem os considera tão descartáveis com uma folha de papel higiénico.
Mas como trabalhar com lixo não impede ninguém de sonhar, a geração formatada acredita chegar ao topo. Pelo caminho ficam: a família, as relações frustradas e quiçá, uma vida por viver.
A Geração Formatada veio para vencer e está a laborar em todas as áreas da sociedade. São fáceis de identificar ao primeiro contacto. Não revelam o mínimo de humanidade e respeito pelo sofrimento do próximo. Apenas respeitam as regras que lhe foram impostas e sabem habilmente manipular a mente alheia. Com talento para reconhecerem as pessoas através dos números, dando especial atenção às que têm muitos zeros nas contas bancárias.
A Geração Formatada purifica a alma na missão zelosa de servir a teia de testas de ferro que sem escrúpulos fazem do povo alcatrão para construírem as estradas do sucesso financeiro de um cartel que está a minar o país.
A geração formatada não se comove diante do povo das mãos calejadas pelo trabalho ou da mente perturbada pelo sofrimento que tem causado a ingerência deste país.
 Um povo que ainda se acobarda diante de uma bata, de uma farda ou de qualquer título, porque embora tenha consciência do seu direito de reclamar, de protestar o medo projeta-lhe o tímido pensamento:
«Se me rebelar, pior para mim. Se me calar, pode ser que ainda tenha sorte. 
Assim morre o pássaro numa gaiola de porta aberta.
O povo, massa trabalhadora, os pilares que sustentam a sociedade, acobarda-se perante a Geração Formatada. Até quando?
Nunca se cruzaram com um elemento da Geração Formatada?
De aparência irrepreensível, olhar vazio e tom de voz dominante a responder ao vosso desespero, com um frio:
«Lamento, são as regras. Mais alguma coisa?»

MFG

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014















            NATAL COM NEVE É MÁGICO!

— Mana, gostava de voltar a ser criança.
— Para usar fraldas? Descanse de que não faltará muito.
— A mana com a idade, fez-se uma amêndoa amarga.
— Uma amêndoa amarga?
— Sim. Seca, enrugada e intragável.
— Já olhou para a sua cara? Parece um papel amachucado e o seu corpo, balofo e gasto, faz-me lembrar um pneu careca.
— A mana consegue falar sem me arreganhar os dentes?  
— Sim, e para que queria a mana voltar a ser criança? 
— Para sonhar.
— Para sonhar basta fechar os olhos e deixar-se dormir.
— Eu refiro-me a sonhar acordada.
— Contente-se em acordar do sonho, que já é uma sorte!
— Acaso, nós não temos uma vida triste? Somos dois monos à espera que alguém nos carregue para o cemitério.
— Só se for a mana. Tão depressa não me apanham lá, a não ser para lhe pôr flores na campa e será pelo meu pé!
— Que simpática… Cuide-se, não vá acontecer o contrário.
— Era da maneira que me livrava de si.
— É muito rezingona! Quando era nova era a mais alegre, embora eu fosse a mais bonita.
— Hahaha!!! Nessa altura já tinha problemas de visão.
— Chega! Já percebi que hoje acordou apostada em me estragar o dia!
— Não será o contrário? Não há dia nenhum que não me encha a cabeça de lamentos. Ou por lhe doer o joelho ou o ombro, por não ver o filho há muito tempo, por estar frio, por estar calor…Livra!       
— Parece uma hiena! Juro que nunca mais abro a boca!
— A mana que passa a vida a encomendar a alma a Deus, não sabe de que é pecado mentir?
— O que é que quer dizer com isso?
— Sempre que consulta o médico, diz que não consegue manter a boca fechada.
— Para o que eu estava destinada…! Valha-me Deus!
— Dê antes, graças à santa da irmã que a atura. Agora, deu-lhe para chorar?
— Porquê? Também estou proibida de chorar?    
— Não seja tonta, mana! Só quero que não seja negativa.
— Está tanto frio, será que vai nevar?
— Se nevar, correremos para a rua para fazer bonecos de neve!
— Que disparate! Tenho lá idade para brincadeiras!
— Não seja enfadonha! Venha à janela ver, a figurinha da frente para meter o carro na garagem, já bateu duas vezes no muro.
— Não me faça rir! Estou aperreada com estas malditas dores nas pernas e a mana a querer que eu vá bisbilhotar os vizinhos. 
— Ó, ó…Não é que começou agora a nevar?
— Pode lá ser?! Olhe que tem razão, está mesmo a nevar. Há vinte anos que não víamos nevar.
— Um Natal com neve é mágico.
— São apenas uns floquitos.
— Porquê, queria uma tempestade? 
— Não mana, sabe o que eu queria? Que o Natal não existisse!
— Irra! Lá vem o seu mau feitio!
— Odeio o Natal!
— Diz isso todos os anos. Lembre-se de que me tem a mim, mas um dia pode não ter.
— Antes isso do que pior!  
— Está a referir-se a eu poder ir à sua frente? Azar o seu, piegas com é, não aguentava muito tempo no Depósito dos Mortos-Vivos com o esqueleto pousado frente à televisão o dia todo, a ouvir tossir e escarrar à sua volta.     
— Que horror! A mana é vingativa e… nem sei o que mais!
— Isso! Solte essa raiva toda, pode ser que amanse.
— A culpa é do Afonso, de eu estar nesta situação!
— Já estava à espera disso! Tinha de falar no fugitivo!
— A mana nunca foi casada, por isso não sabe o que significa ser trocada por outra! Ainda se ela valesse alguma coisa…!
— Mas valia para ele. Pena, a mana não ter aceitado o pedido de casamento do Matias. Era um bom homem, com dinheiro e com urgência em morrer.
— Valia-me de muito! Passava de separada a casada e num ano ficava viúva.
— Melhor, era impossível. Morrendo o bicho, ficava-lhe o chiqueiro.
— Pois, mas a mana esquece-se de que o bicho era feio e cheirava mal da boca?    
— Veja, os flocos de neve continuam a cair. Natal com neve é mágico!
— Repito, não gosto do Natal!
— Dos presentes, também não gosta?
— Depende, se me calhar uns calções ridículos como os do ano passado, dispenso.
— Ingrata! Mas eu perdoo-lhe. Este ano prometo que vai receber um presente bem melhor.
— Posso saber o que é?
— Não, para não estragar a surpresa. Aliás, são dois presentes.
— Mau! O que é que lhe deu, para este ano ser tão generosa?
— Porque, embora julgue que não, eu gosto muito de si.
— Sei. Eu também gosto da mana. Mas, não me pode dar uma pista do que comprou para mim? Como tem feito nos anos anteriores?
— Posso, até porque raramente acerta. Espere, disse pista?
— Disse.
— Nesse caso, está morno.
— Que chata! Assim ainda fico mais curiosa e de cabeça no ar.
— Disse No Ar? Começou a ficar quente.
Pista e No Ar Será que…e avião, mana? E avião?
— Está quente, muito quente! Sua tonta, porque é que se pôs a chorar?
— Nada, é por ver a neve a cair. Tem razão ao dizer de que um Natal com neve é mágico.


Maria de Fátima Gouveia

terça-feira, 14 de janeiro de 2014


               PENSAMENTOS MORTAIS

 

Vitório abriu a porta, passou revista pelo interior da casa só depois é que entrou, numa passada incerta e vagarosa.
A casa, pequena e simples, estava como sempre a vira, arrumada e limpa.

Vitório arrastou-se até à cozinha, manco como nascera e trôpego porque bebera e pousou sobre a mesa a garrafa de vinho que lhe dera o Manel da Tasca do Quelho. O corpo pesava-lhe, fez um esforço danado para retirar um copo do armário e foi sentar-se arreliado, acreditando que o mundo inteiro conspirava contra ele. Não bastava ter nascido manco e pobre, sem pai nem sortes para o alinhar na vida.

O trabalho na estufa do Sôr Maurício era duro, arruinava-lhe o corpo e endemoninhava-lhe a cabeça com o capataz a morder-lhe os calcanhares.
Às vezes gerava-se dentro dele tamanha onda de revolta que só lhe dava vontade de o arrumar de vez. O que o travava era o pavor que tinha à prisão. O irmão morrera nela.

Findo o trabalho, Vitório gostava de parar na Tasca do Quelho. Fosse pelo vinho ou por estar entre os amigos, lá, os pensamentos maléficos que o atormentavam, dissipavam-se.

Mas quando chegava a casa, era como se libertasse o Demónio que há muito se lhe alojara no interior da carcaça. Um Demónio que lhe atazana o juízo, assoprando-lhe ao ouvido:

 

«Vitório, tens uma vida de merda! Só trabalho, trabalho, e mais trabalho, para quê? Tens uma mão cheia de nada!

O Manel da Lorca ainda se safa, os pais ajudam-no. O Luís da Ranha é corno, mas a mulher tem pai que é rico. O Zé fuinha esteve em França, a esse tudo lhe corre de feição. Só tu, meu labrego, é que te esmifras a trabalhar e não és dono de nada! Até a Laila faz de ti o que quer. Já agora, sabes onde ela paira?»

 

Vitório ergueu-se para dar uma volta pela casa. Encontrou tudo no devido lugar. Gavetas arrumadas, nenhum talher por lavar, nenhuma peça de roupa por engomar, nada estava fora do sítio…O Demónio alertou-o:

 

«Não passas dum tolo! És um mouro de trabalho enquanto a Laila goza a vida. A casa mantem-se por si, que tem ela para fazer? Nada! Como é que a vida pode correr-te bem?»

 

Vitório reparou na cama que estava composta com a colcha de renda que Laila andara a fazer meses a fio, após o jantar. Porém, o Demónio alertou-o para coisas que por sua cabeça jamais atingiria.

 

 «Abre os olhos Vitório! Para estas porcarias tem ela jeito, mas não, para focinhar na terra como tu! Laila não passa duma vadia!»

 

Vitório regressou à cozinha para emborcar mais um copo. O vinho era morangueiro, mas se fosse um Pera Manca teria o mesmo sabor. Vinho é vinho, a qualidade era de somenos importância para um sujeito na sua condição, só queria relaxar o corpo e anestesiar-se das amarguras da vida.

O Demónio voltou a espicaçá-lo:

 

«O Manel da Tasca do Quelho mantem a mulher com a rédea curta. A Anastácia obedece sem regatear, ao passo de que a tua está sempre a protestar. Protesta por tu gastares dinheiro na taverna. Que tem ela a ver com o dinheiro que ganhas com o teu suor?

Abre os olhos Vitório! Se tu lhe dás pouco dinheiro, como é que  entra boa comida nesta casa? O queijo ela te dá ao pequeno-almoço é caro, tal como o pão com passas de que tu tanto gostas, assim como o toucinho fumado.»

 

— Ela trabalha nas limpezas em casa duma madame, lá para os lados do Ribeiro Seco.

 

«Disse-to ela, mas tu nunca te importaste em saber, se era verdade

 

O sino da aldeia tocou, Vitório olhou de relance o relógio pendurado na parede da cozinha. Tinha a vista turva, o ponteiro oscilava entre as sete e as oito, ficou na dúvida. De qualquer das formas, a Laila tinha obrigação de já ter chegado.

 

«Já reparaste de que a Laila ultimamente anda a vestir-se melhor? Não te faz pensar em nada? Até os teus amigos sabem de como as mulheres são manhosas. Tens o exemplo do Luís da Ranha, que não sabe que a mulher tem um caso com o dono da funerária.»

 

Não! A Laila não será mulher para isso! Até porque tenho amigos que me avisavam.

 

«Claro que avisavam, tal como avisaram o Luís da Ranha. Tu sabes de que a Leila não é mulher de se deitar fora e gosta de se exibir na frente dos homens. Ou será que nunca reparaste?»

 

— Admito que ela é jeitosa mas daí…isso não, porque eu matava-a! Não aceito ser corno  manso como o Luís da Ranha! Matava a cadela!

 

«Não achas estranho a Laila estar a demorar tanto? Se Laila te andar a enganar, podes crer que ninguém to dirá, mas rir-se-ão nas tuas costas. Não permitas isso!»

 

— Cala-te maldito! Eu não acredito que ela me engane! Mas se for verdade, podes crer de que a mato!

 

Vitório de repente calou-se, o ruído da porta a abrir-se e a aproximação de uns passos ligeiros não o enganavam. Laila entrara em casa.

— Por onde andaste, minha cabra? — Atirou furioso.

Laila pousou calmamente o saco das compras sobre a bancada, antes de protestar::

— Outra vez bêbado, Vitório? Não tens juízo, valha-me Deus!

Vitório explodiu:

— Por que é que só chegaste agora?

— Por causa da teimosia da Dona Beatriz. Hoje, deu-lhe para não querer a sopa, por isso  cheguei mais tarde.

— Julgas que eu sou lorpa? Disseste-me que trabalhavas em limpezas e agora vens-me com uma história diferente?

— Eu não te avisei de que à Sexta passava a cuidar da Dona Beatriz? Tenho que apanhar todos os trabalhos que me aparecem, porque se contasse  apenas com o teu dinheiro, passámos fome!

— Andas-me a pôr os cornos?

— Que disparate é que tu estás para aí a dizer, homem? Cala-te!

— Tu não sabes do que eu sou capaz!

— Sabes que mais? Vai-te deitar um bocado enquanto preparo o jantar.

Mas o Demónio decidiu sair vencedor naquele fim de tarde.

 

«És um frouxo! Vais deixar que ela continue a enganar-te? Não fazes nada, corno?»

 

— Não sou frouxo, nem admito ser corno!

— Eu não disse nada Vitório. Vê se te acalmas, homem!

 — Tu queres que eu me acalme? Queres? Então, já vais ver!

 

A raiva atravessou-lhe os olhos e a desconfiança feita certeza deu-lhe força suficiente para ir  atrás da porta e pegar na caçadeira que mantinha sempre carregada, para no caso de ser assaltado.

Laila olhou-o com surpresa que de imediato se transformou em terror:

— Estás louco Vitório? O que é que tens na cabeça?

— Ainda perguntas?

— Desvia a arma para lá, Vitório! Estás louco?!

— Estou louco, sim! Louco para acabar contigo, porque tenho vergonha na cara!

Laila não teve como escapar, o primeiro disparo atingiu-a no peito, o segundo estoirou-lhe o rosto.

Depois disto, Vitório sentiu um estranho estremecimento dentro de si e de seguida, um forte sopro saiu-lhe pela boca. Ficou com a sensação de que o Demónio que há muito se habitava nas suas entranhas acabara de o abandonar.

Aliviado, baixou a arma e de cabeça vazia e olhos inquietos pasmou a observar um lago vermelho a alastrar-se pelo chão e a entranhar-se nas ranhuras dos mosaicos, como água a inundar as valas que ele abria na estufa do Sôr Maurício. Na brancura da parede os arabescos vermelhos pareciam serpentes a deslizarem indolentemente por ela abaixo. Os salpicos lembraram-lhe as papoulas do campo varridas pelo vento.

De um momento para o outro, o mundo pintara-se de vermelho. Havia vermelho no chão, nas paredes, nas botas, na espingarda, nas mãos…

Apavorado, largou a arma e arrastou os pés em direção ao quarto, convencido de que tudo aquilo fazia parte dum pesadelo, e que bastava passar um pouco pelas brasas, para tudo voltar ao normal.
Até porque Laila estava a chegar e ele não queria que ela o visse naquele estado.

 

Mas Vitório não saiu mais do pesadelo, e na manhã seguinte a aldeia acordou em alvoroço perante tamanha barbárie. Os vizinhos e os amigos ficaram chocados com a  atitude macabra de Vitório. Deitar-se a dormir após matar a mulher e comentavam, consternados:

 

«Eles davam-se bem, nada fazia prever esta tragédia.»

«Não se faz isto: matar a mulher e deitar-se a dormir.»
«Ainda ontem lhe dei uma garrafa de vinho, se eu adivinhasse...»

«A Laila queixava-se que ele bebia muito, mas que não a tratava mal.»  

«Coitada, ainda ontem esteve a cuidar da Dona Beatriz.»  

«De manhã engomou-me uma carga de roupa, só visto!»

«Tenho pena, porque eram ambos boas pessoas»

«Parece obra do Diabo!»

 

Maria de Fátima Gouveia

  

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014


                A IDADE MAIOR

 

Há cerca de cinquenta anos atrás, tinha eu catorze, surgiu na minha escola uma psicóloga para fazer uns testes aos alunos, que cuja finalidade nunca descobrimos. A escolha era aleatória e para minha inocente alegria calhei na rifa.

Após um curto diálogo, a psicóloga passou-me para a mão um papel e um lápis e mandou-me desenhar num papel, uma casa com um jardim que incluísse árvores.

Eu desenhei uma casa simples, com uma porta e duas janelas que enfeitei com cortinas e nos respetivos parapeitos coloquei vasos com flores. À volta da casa criei um jardim no qual plantei laranjeiras de baixo porte, mas prenhas de fruta. Depois, desenhei o sol, as nuvens e os pássaros.

A psicóloga observou o desenho por uns segundos e disse, com uma indiferença que me chocou de que eu era uma garota pouco ambiciosa e que não me esforçava para alcançar os objetivos.    

Naquela época eu acreditava nos adultos para mais, letrados. Julgava que estes sabiam tudo, não mentiam, não enganavam, nem se enganavam, razões que me levaram a sentir-me derrotada. A afirmação dela soou-me a futuro fracassado.

Pedi-lhe humildemente que me explicasse de que forma um singelo desenho podia predestinar  as minhas potencialidades, ou a ausência delas.   

A psicóloga disse que uma pequena casa representava uns desejos modestos e a altura das árvores relativamente à casa: o tamanho da ambição. A explicação foi arrasadora. Este, seria um daqueles casos para esquecer, mas não foi esquecido.

 

O tempo passou num ápice, por isso se diz que ele “voa”, hoje estou na Idade Maior, a idade das limitações crescentes. Embora haja para aí super idosos a querem-me convencer do contrário.

O lado positivo da questão é que me colocou na confortável situação de poder assumir sem pruridos o que sou, e como sou. Formada pelos trilhos da vida, consciente de que sei muita coisa, e quase nada.

Já não faço fretes porque os sapos tornaram-se muito rijos para os meus dentes e tenho um amigo chamado Alzheimer que vai e vem, conforme me convém.

A minha lista das amizades encurtou, porque aconselhei algumas a viajarem para o país do “Vai e não voltes”. Outras, vivem dentro de mim.   

Mas não julguem que por estar na Idade Maior não saboreio a vida. Podem crer que até me embriago, mas muito à minha maneira.

 

Ontem, não sei por que razão me veio à ideia a história da psicóloga que passou por aquela escola a traçar perfis psicológicos aos alunos. Pena, não poder hoje dizer-lhe que no meu caso, errou ou só acertou pela metade. ´

Continuo a gostar de casas pequenas. Há casas pequenas que envolvem-nos num aconchegante abraço ao ponto de termos dificuldade em sair delas. Numa casa grande eu sinto-me desconfortável, a menos que esta seja minha e eu recrie em qualquer compartimento, a minha “casa pequena”.

Há sentimentos que transcendem o sentido das palavras.

Quanto a eu ser pouco ambiciosa, não é verdade, mas nunca sofri de uma ambição perniciosa ou fantasista.

Os meus sonhos eram concretizáveis e lutei por eles, aproveitando as oportunidades que me foram surgindo, sem nunca ser oportunista.

Uma ambição desmedida provoca estragos ou não nos leva a lado nenhum.

Eu nasci pobre, conforme relatei no livro “Raízes do Pecado”, mas tive sonhos que jamais julguei que pudessem realizar-se, mas realizaram-se.

Claro que, algumas coisas fugiram-me da mão porque a vida atraiçoa, mas o resultado obtido, superou as expectativas.

Esgotados os sonhos, agora anseio por algo modesto ou talvez não. Desejar a saúde e a paz, não é ser modesto. São os bens mais preciosos de uma vida.

Mas a vida é feita de sonhos e sem eles ela perde o encanto. Para os sonhos se realizarem, temos de acreditar nas nossas potencialidades e caminharmos na direção certa.

Tudo está ao alcance da nossa mão, o segredo é acreditar.

Um dia, houve alguém que me perguntou: certo, e se eu desejar a lua?

Respondi: Numa noite de luar ergue a mão na direção da lua, e faz a magia acontecer.

A vida pode ser mágica, inclusive na Idade Maior, no entanto, nada nos preencherá a alma se não soubermos ser felizes.

 

Maria de Fátima Gouveia

terça-feira, 6 de novembro de 2012

PARAGEM OBRIGATÓRIA

                                                       

“Paragem Obrigatória” foi o nome que Zé Petinga botou à taverna que virou bar. Comprara aquela espelunca por meio tostão ao Zarolho do Fundão só depois é que tomou consciência do aspecto degradado da aquisição. Teve que meter mãos à obra. Pôs um pouco de cimento aqui e outro acolá, acrescentou-lhe umas quantas velharias e fez do sítio paragem obrigatória para todos os que quisessem deitar conversa fora e umas pingas para dentro.
Novos, velhos, esforçados, calaceiros, vigaristas, viajantes, todos passaram a fazer paragem obrigatória naquele buraco escuro a cheirar a vinho e a carapaus fritos, situado mesmo em frente da estação de comboios de Vagueirinha, o fim da linha.
Naquela tarde indefinida de Novembro, em que não chovia nem fazia sol, daqueles dias em que o corpo pesa e a vontade amolece, Zé Petinga despertou com o som da locomotiva que acabara de chegar e que ainda arfava de canseira. Foi quando viu a luz da entrada ser cortada por uma silhueta que demorou a revelar-se no lusco-fusco em que Zé Petinga mantinha a casa. A pessoa que vinha na sua direcção, pensou ser, o Gracindo Manco que fora à cidade tratar do registo de umas sortes que comprara à viúva do Outeiro. Mas não, era uma figura rebolona, melhor vendo… um mulherão de fazer gosto aos olhos que estacionou na sua frente com uma estranha mala na mão. Madurada, mas com uma cobertura do esqueleto de primeiríssima qualidade. Zé Petinga atarantado com aquela visão improvável perguntou, cheio de solicitude:
— Que deseja vossemecê, linda criatura, deste humilde lugar?
Ela rodou os olhos grandes e pestanudos por todo o bar, depois, com um sossego de alma de fazer chocalhar os sentidos de um homem, soprou:
— Para já, quero acalmar a minha sede, moço. Venho de longe.
— Um caneco de água?
— Não vim para me afogar, jeitoso.
— Tinto ou branco?
— Não sou esquisita, o que vier marcha.
Enquanto a dama bebia, Zé petinga acariciava as curvas dela com o olhar, sorrindo deleitado. Nunca lhe entrara na cerca um monumento daqueles. Assim tão…nem tinha palavras para aquele despautério. Ela batendo duas vezes com o copo vazio no balcão, sussurrou:
— Outro! O jeitoso é alfaiate nas horas vagas?
— Claro que não moça! Porque pergunta?
— Estava a tirar-me as medidas, não?
Zé Petinga abaixou-se para encher o copo directamente do túnel, ao mesmo tempo que fermentava de inquietação. Ao pousar o copo na frente da dama, respondeu atarantado:
— É que nunca aconteceu, entrar aqui, uma moça tão… bem composta. Sem intenção de a ofender, não é daqui, que motivo a trouxe a Vagueirinha?
— O acaso.
— Não conheço, não senhora. Vieram de passagem?
— Propor-lhe uma animação. Permissão para tocar…
— Permissão dada. Pode para tocar onde quiser.
— Não só viola, como cantoria também.
— Pois… mas aqui só circulam homens. Muitos.
— Pois é o que eu mais quero. Muitos homens.
Zé petinga afogueou-se com a resposta dela. Limpou o suor do pescoço com a ponta do avental.
— A moça não é modesta, quanto leva?
— Nada. Não vejo nada que me agrade.
— É de graça?
— Não moço. Eu sou de Santa Luzia. Pode fazer a proposta.
— Casa, eu tenho, só precisava de mobília nova e um fogão a gás.
— Já estou servida de aconchego. Só quero cantar e tocar no seu bar.
— Quando quer começar?
— Esta noite, aceita?
— Aceito. Esta e todas e mais.
— Todas e mais… É muito tempo. Não fico, sigo.
— Não pode seguir, Vagueirinha é fim da linha.
— Então volto.
— Combinado. Volte logo, que fico à espera.
Ela pediu para ele guardar o estranho malão com feitio de mulher nua e virou costas. Zé Petinga voltou a limpar o suor, desta vez foi mesmo com o enxergão de limpar o balcão, enquanto comentava para si: «Livra! Pior que atender um bando de desordeiros».
— Zé Petinga, onde vossemecê arranjou o violão?
Perguntou o Pencudo da Cova Funda que à entrada se cruzara com a forasteira. Zé Petinga pulou excitado.
— Um violão mesmo. Não acha?
— Só se fosse vesgo das vistas é que não veria. Peitaça grande, anca redonda e perna grossa, me acuda meu Bom Jesus de Braga! Num violão daqueles até eu tocava sem saber música.
— Vem à noite tocar para os homens. Ela quer muitos.
— Carago! Não é mulher de uma nota só.
— Não falou em dinheiro.
A notícia correu depressa de boca em boca. Só na boca dos homens, que fez segredo para as mulheres não desconfiarem. O bar encheu até à porta. Os copos rodaram para as mesas e das mesas para o balcão sem descanso. Zé Petinga respingava com tanto barulho, sujeira e canseira. Passava da meia-noite, quando a dama surgiu desacompanhada.
Os homens fizeram burburinho e levantaram-se todos para a ver com olhos de RX. A dama não se mostrou consternada nem alegrada. Com uma indiferença de pôr os cabelos de um homem em pé, caminhou com firmeza desengonçada até ao balcão.
— Dê cá o violão, jeitoso.
Zé petinga sorriu com um palito encravado no teclado danificado.
— É para já moça. Onde quer tocar?
— Onde me deixar.
Zé petinga agarrando num velho banco de madeira, olhou em volta para avaliar o melhor local. Ela esticou o braço para um canto ao fundo, ele correu a colocar lá o banco.
Os homens amontoavam-se e acotovelavam-se para a ver de corpo inteiro. Ela quase que sorriu ao dizer-lhes:
— Senhores, tanto empenho para ouvir uma modinha…
Eles recuaram atabalhoadamente. Ela abriu o malão, sacou a viola, sentou-se descontraidamente, e após uns breves acordes de ensaio, começou a tocar de verdade. Os homens caíram todos de supetão nos respectivos bancos, escutando-a boquiabertos.
É que a mulher tocava melhor que qualquer homem, na opinião deles. Os seus dedos passavam pelas cordas da guitarra com tal mestria que os levou para outra dimensão. Onde os lençóis se embrulham, os gemidos se soltam e as horas têm a duração de um minuto.
Na verdade nenhum deles prestava atenção à música que se misturava com o ruído de fundo. Comentários jocosos e o tilintar de copos nas mesas. É que, música é música, mas a mulher era única no género.
De súbito, a porta do bar abriu-se com grande estrondo, dando passagem a um brutamontes mal-encarado, que entrou a berrar como um javali enfurecido:
— Pára com essa chinfrineira e dá-me um copo! Acorda Zé Petingaaaa!
Zé Petinga abriu os olhos atarantado. O rádio em altos berro e o Gracindo Manco a bater com o punho no balcão.
— Cadê a mulher?
— Que mulher Zé Petinga?! Outra vez a delirar? Põe tento nessa cabeça, homem! Senão, ficas zaruca de vez!

M.F.G.