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Castanheira de Pera, Portugal
"O Meio-termo é a virtude dos mentecaptos lobrigando a sua incapacidade de tocar o excelso".

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012


                                 BOM DIA TRISTEZA

Depois de tudo o que passara na vida fui aprisionando a custo as coisas más na gaveta do esquecimento, embora de quando em vez, alguma escapasse para fustigar o meu espírito fragilizado. Quis a acreditar que na vida reinava a lei da compensação, confiada nos créditos que tinha a meu favor. Mas um telefonema fez-me ver que cegara em fantasias poéticas do dar e receber, do sonho, da esperança… porque a vida é apenas uma sucessão de factos, e se coincidências existem é por mero acaso, porque ela simplesmente acontece, indiferente à alegria que oferece ou ao sofrimento que possa causar.
Aquele telefonema golpeou-me a alma, porque quando alguém atravessa a nossa vida mesmo na perpendicular, sem intenção de voltar, os vestígios de nos terem habitado ficam para sempre riscados na nossa memória.
Do outro lado da linha soara uma voz perdida no tempo, que num regresso tardio pedia-me um favor em nome de uma antiga amizade. Quando desliguei, fui até à janela para que o vento frio que se fazia sentir naquela tarde de Inverno, me acalmasse. Minutos depois, peguei no telefone e dei a notícia a uma outra pessoa com quem partilhara uma juventude inquieta e repleta de acidentes. Pairou um profundo silêncio entre nós. Estupefacção?!
 Da minha parte, não o soube definir porque desfiara-se a linha que nos ligara no passado. Mas o choque fora brutal, não esperava que uma doença maldita decepasse pela raiz uma vida que não chegara a amadurecer.
Ainda hoje me interrogo se agi corretamente, mas por detrás deste pedido, estava uma família devastada pelo desgosto que merecia todo o meu respeito e clamava pela minha presença. Acedi ao que me pareceu um pacto dos enjeitados e surgiram tão poucos!   
Hoje lembro aquele dia como se fosse imperioso descobrir o verdadeiro objetivo da existência humana… nenhum!
Crescer dói, viver dói, sobreviver dói ainda mais, o resto só serve para engalanar o caminho que temos que percorrer até a natureza nos reduzir a pó.
Quando entrei naquele quarto de hospital, estremeci ao olhar de relance aquele ser, caminhar dolorosa e progressivamente para o concreto que é a morte. O espelho da verdade cuja imagem refletida poderia ser a de qualquer um de nós, assombrou-me o espírito.
A partir desse dia, tudo o de belo que me queiram dizer sobre a existência humana, considero lirismo! Frases belas compõem poemas, não curam dores de alma.   
Só com muita imaginação se poderia adivinhar que jazia naquela cama uma mulher. Vi com tristeza desenhado no lençol o perfil de um esqueleto mirrado, a sombra de um corpo que aos quinze anos era já o de uma mulher fisicamente perfeita.
 Na minha inocência de menina, igualei-a a uma princesa de contos de fadas quando a conheci aos doze anos. Poucas pessoas têm o condão de nascer naturalmente tão belas. Fui sua companhia até aos dezoitos, altura em que ela começou a criar barreiras contra o passado.
Vi que a sua pele antes alva, fina, apresentava-se macilenta. Nenhuns vestígios da farta e longa cabeleira que era tão gabada. Os olhos cor de azeitona adornados por longas pestanas estavam reduzidos a pequenos globos cujas pálpebras nuas tinham cerrado de vez.
Sempre a considerara uma rapariga de índole apagada, mais observadora do que participativa, pouco desvendava de si própria. Só mais tarde percebi que se apoiava nos silêncios para ocultar as emoções, e sendo solitária por vocação revelara-se determinada em atingir os objetivos a que se propôs, não os partilhara com terceiros para evitar interferências.
A partir do dia em que começou a namorar em segredo um jovem filho de gente rica, esforçou-se por apagar todas as ligações ao passado, como se fosse confundível, vivência humilde com humilhante. 
Distanciou-se dos amigos que não correspondiam ao padrão ambicionado, depois da família.
Fez-se esquecida de uma mãe que merecia o nome na placa da rua onde morou. Uma mãe que por ser tão generosa, só lhe pôde dar como herança uma invulgar beleza.
Adotada pela nova família rica não quis mais aproximações a nada que a pudesse associar às vendas das hortaliças, aos chinelos de pano, ao cheiro do peixe frito à mesa, do pão escuro, da casa das águas-furtadas, aos mendigos à porta esperando por um prato de sopa. Ao calor humano do qual eu tinha tanta falta, mas que calava por timidez. 
Analisando desta forma, parecia que se confirmava o ditado: «tudo se paga nesta vida!», mas não é verdade! Seria injusto uns pagarem e outros não!
 Seria também injusto pensar desta maneira perante o desânimo expressado nos olhos de dois meninos destinados à orfandade materna, cedo demais. A inocência à mercê da ira Divina? Claro que não! A vida é como uma roleta russa, atinge aleatoriamente quem faz parte do jogo. A inscrição é feita ao nascer.     
Estava tão desatinada que desatei a rir de forma absurda. Ri, ri com lágrimas na alma, mas ri estupidamente sem conseguir controlar-me. Naquela situação era indigno rir, mas não conseguia pôr cobro ao meu gargalhar, foi aterrador.
As pouquissimas pessoas presentes olhavam-me atonitas, sem entenderam a razão do meu riso.
Eu ria do absurdo da vida ou da porca da vida! Uma prostituta que nos seduz e nos atira para o lixo depois de nos exaurir a alma, fazendo de nós uns fantoches para sua diversão.
A amiga que me acompanhara deu-me um estalo, confessando emocionada:
— Desculpa…estavas em estado de choque!
Penso que todos perceberam isso. Fixei o que restava daquele ser humano inconsciente, com vestígios de coisa nenhuma e desejei-lhe a morte.
Pudesse eu ter uma arma… pudesse eu ter coragem suficiente, apontava-a desumanamente à sua fronte e soltava o tiro certeiro, como um beijo de despedida em memória do tempo em que fomos amigas.
Com a certeza que ela jamais se exporia na fealdade da podridão da carne, por quanto se julgara imaculada numa bolha de ilusões.
Desceu à terra um mês depois, numa manhã cinzenta, há vinte anos atrás.
De súbito uma revoada de folhas voaram em remoinho à minha volta, sorri intimamente, querendo acreditar que a Natureza estremecera ao receber no seu ventre, aquele corpo com reminiscências de uma beleza invulgar.

«Podem desistir de nós, mas nunca apagarão o registo de nos terem habitado»

Maria de Fátima Gouveia