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Castanheira de Pera, Portugal
"O Meio-termo é a virtude dos mentecaptos lobrigando a sua incapacidade de tocar o excelso".

terça-feira, 6 de novembro de 2012

PARAGEM OBRIGATÓRIA

                                                       

“Paragem Obrigatória” foi o nome que Zé Petinga botou à taverna que virou bar. Comprara aquela espelunca por meio tostão ao Zarolho do Fundão só depois é que tomou consciência do aspecto degradado da aquisição. Teve que meter mãos à obra. Pôs um pouco de cimento aqui e outro acolá, acrescentou-lhe umas quantas velharias e fez do sítio paragem obrigatória para todos os que quisessem deitar conversa fora e umas pingas para dentro.
Novos, velhos, esforçados, calaceiros, vigaristas, viajantes, todos passaram a fazer paragem obrigatória naquele buraco escuro a cheirar a vinho e a carapaus fritos, situado mesmo em frente da estação de comboios de Vagueirinha, o fim da linha.
Naquela tarde indefinida de Novembro, em que não chovia nem fazia sol, daqueles dias em que o corpo pesa e a vontade amolece, Zé Petinga despertou com o som da locomotiva que acabara de chegar e que ainda arfava de canseira. Foi quando viu a luz da entrada ser cortada por uma silhueta que demorou a revelar-se no lusco-fusco em que Zé Petinga mantinha a casa. A pessoa que vinha na sua direcção, pensou ser, o Gracindo Manco que fora à cidade tratar do registo de umas sortes que comprara à viúva do Outeiro. Mas não, era uma figura rebolona, melhor vendo… um mulherão de fazer gosto aos olhos que estacionou na sua frente com uma estranha mala na mão. Madurada, mas com uma cobertura do esqueleto de primeiríssima qualidade. Zé Petinga atarantado com aquela visão improvável perguntou, cheio de solicitude:
— Que deseja vossemecê, linda criatura, deste humilde lugar?
Ela rodou os olhos grandes e pestanudos por todo o bar, depois, com um sossego de alma de fazer chocalhar os sentidos de um homem, soprou:
— Para já, quero acalmar a minha sede, moço. Venho de longe.
— Um caneco de água?
— Não vim para me afogar, jeitoso.
— Tinto ou branco?
— Não sou esquisita, o que vier marcha.
Enquanto a dama bebia, Zé petinga acariciava as curvas dela com o olhar, sorrindo deleitado. Nunca lhe entrara na cerca um monumento daqueles. Assim tão…nem tinha palavras para aquele despautério. Ela batendo duas vezes com o copo vazio no balcão, sussurrou:
— Outro! O jeitoso é alfaiate nas horas vagas?
— Claro que não moça! Porque pergunta?
— Estava a tirar-me as medidas, não?
Zé Petinga abaixou-se para encher o copo directamente do túnel, ao mesmo tempo que fermentava de inquietação. Ao pousar o copo na frente da dama, respondeu atarantado:
— É que nunca aconteceu, entrar aqui, uma moça tão… bem composta. Sem intenção de a ofender, não é daqui, que motivo a trouxe a Vagueirinha?
— O acaso.
— Não conheço, não senhora. Vieram de passagem?
— Propor-lhe uma animação. Permissão para tocar…
— Permissão dada. Pode para tocar onde quiser.
— Não só viola, como cantoria também.
— Pois… mas aqui só circulam homens. Muitos.
— Pois é o que eu mais quero. Muitos homens.
Zé petinga afogueou-se com a resposta dela. Limpou o suor do pescoço com a ponta do avental.
— A moça não é modesta, quanto leva?
— Nada. Não vejo nada que me agrade.
— É de graça?
— Não moço. Eu sou de Santa Luzia. Pode fazer a proposta.
— Casa, eu tenho, só precisava de mobília nova e um fogão a gás.
— Já estou servida de aconchego. Só quero cantar e tocar no seu bar.
— Quando quer começar?
— Esta noite, aceita?
— Aceito. Esta e todas e mais.
— Todas e mais… É muito tempo. Não fico, sigo.
— Não pode seguir, Vagueirinha é fim da linha.
— Então volto.
— Combinado. Volte logo, que fico à espera.
Ela pediu para ele guardar o estranho malão com feitio de mulher nua e virou costas. Zé Petinga voltou a limpar o suor, desta vez foi mesmo com o enxergão de limpar o balcão, enquanto comentava para si: «Livra! Pior que atender um bando de desordeiros».
— Zé Petinga, onde vossemecê arranjou o violão?
Perguntou o Pencudo da Cova Funda que à entrada se cruzara com a forasteira. Zé Petinga pulou excitado.
— Um violão mesmo. Não acha?
— Só se fosse vesgo das vistas é que não veria. Peitaça grande, anca redonda e perna grossa, me acuda meu Bom Jesus de Braga! Num violão daqueles até eu tocava sem saber música.
— Vem à noite tocar para os homens. Ela quer muitos.
— Carago! Não é mulher de uma nota só.
— Não falou em dinheiro.
A notícia correu depressa de boca em boca. Só na boca dos homens, que fez segredo para as mulheres não desconfiarem. O bar encheu até à porta. Os copos rodaram para as mesas e das mesas para o balcão sem descanso. Zé Petinga respingava com tanto barulho, sujeira e canseira. Passava da meia-noite, quando a dama surgiu desacompanhada.
Os homens fizeram burburinho e levantaram-se todos para a ver com olhos de RX. A dama não se mostrou consternada nem alegrada. Com uma indiferença de pôr os cabelos de um homem em pé, caminhou com firmeza desengonçada até ao balcão.
— Dê cá o violão, jeitoso.
Zé petinga sorriu com um palito encravado no teclado danificado.
— É para já moça. Onde quer tocar?
— Onde me deixar.
Zé petinga agarrando num velho banco de madeira, olhou em volta para avaliar o melhor local. Ela esticou o braço para um canto ao fundo, ele correu a colocar lá o banco.
Os homens amontoavam-se e acotovelavam-se para a ver de corpo inteiro. Ela quase que sorriu ao dizer-lhes:
— Senhores, tanto empenho para ouvir uma modinha…
Eles recuaram atabalhoadamente. Ela abriu o malão, sacou a viola, sentou-se descontraidamente, e após uns breves acordes de ensaio, começou a tocar de verdade. Os homens caíram todos de supetão nos respectivos bancos, escutando-a boquiabertos.
É que a mulher tocava melhor que qualquer homem, na opinião deles. Os seus dedos passavam pelas cordas da guitarra com tal mestria que os levou para outra dimensão. Onde os lençóis se embrulham, os gemidos se soltam e as horas têm a duração de um minuto.
Na verdade nenhum deles prestava atenção à música que se misturava com o ruído de fundo. Comentários jocosos e o tilintar de copos nas mesas. É que, música é música, mas a mulher era única no género.
De súbito, a porta do bar abriu-se com grande estrondo, dando passagem a um brutamontes mal-encarado, que entrou a berrar como um javali enfurecido:
— Pára com essa chinfrineira e dá-me um copo! Acorda Zé Petingaaaa!
Zé Petinga abriu os olhos atarantado. O rádio em altos berro e o Gracindo Manco a bater com o punho no balcão.
— Cadê a mulher?
— Que mulher Zé Petinga?! Outra vez a delirar? Põe tento nessa cabeça, homem! Senão, ficas zaruca de vez!

M.F.G.