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Castanheira de Pera, Portugal
"O Meio-termo é a virtude dos mentecaptos lobrigando a sua incapacidade de tocar o excelso".

terça-feira, 14 de janeiro de 2014


               PENSAMENTOS MORTAIS

 

Vitório abriu a porta, passou revista pelo interior da casa só depois é que entrou, numa passada incerta e vagarosa.
A casa, pequena e simples, estava como sempre a vira, arrumada e limpa.

Vitório arrastou-se até à cozinha, manco como nascera e trôpego porque bebera e pousou sobre a mesa a garrafa de vinho que lhe dera o Manel da Tasca do Quelho. O corpo pesava-lhe, fez um esforço danado para retirar um copo do armário e foi sentar-se arreliado, acreditando que o mundo inteiro conspirava contra ele. Não bastava ter nascido manco e pobre, sem pai nem sortes para o alinhar na vida.

O trabalho na estufa do Sôr Maurício era duro, arruinava-lhe o corpo e endemoninhava-lhe a cabeça com o capataz a morder-lhe os calcanhares.
Às vezes gerava-se dentro dele tamanha onda de revolta que só lhe dava vontade de o arrumar de vez. O que o travava era o pavor que tinha à prisão. O irmão morrera nela.

Findo o trabalho, Vitório gostava de parar na Tasca do Quelho. Fosse pelo vinho ou por estar entre os amigos, lá, os pensamentos maléficos que o atormentavam, dissipavam-se.

Mas quando chegava a casa, era como se libertasse o Demónio que há muito se lhe alojara no interior da carcaça. Um Demónio que lhe atazana o juízo, assoprando-lhe ao ouvido:

 

«Vitório, tens uma vida de merda! Só trabalho, trabalho, e mais trabalho, para quê? Tens uma mão cheia de nada!

O Manel da Lorca ainda se safa, os pais ajudam-no. O Luís da Ranha é corno, mas a mulher tem pai que é rico. O Zé fuinha esteve em França, a esse tudo lhe corre de feição. Só tu, meu labrego, é que te esmifras a trabalhar e não és dono de nada! Até a Laila faz de ti o que quer. Já agora, sabes onde ela paira?»

 

Vitório ergueu-se para dar uma volta pela casa. Encontrou tudo no devido lugar. Gavetas arrumadas, nenhum talher por lavar, nenhuma peça de roupa por engomar, nada estava fora do sítio…O Demónio alertou-o:

 

«Não passas dum tolo! És um mouro de trabalho enquanto a Laila goza a vida. A casa mantem-se por si, que tem ela para fazer? Nada! Como é que a vida pode correr-te bem?»

 

Vitório reparou na cama que estava composta com a colcha de renda que Laila andara a fazer meses a fio, após o jantar. Porém, o Demónio alertou-o para coisas que por sua cabeça jamais atingiria.

 

 «Abre os olhos Vitório! Para estas porcarias tem ela jeito, mas não, para focinhar na terra como tu! Laila não passa duma vadia!»

 

Vitório regressou à cozinha para emborcar mais um copo. O vinho era morangueiro, mas se fosse um Pera Manca teria o mesmo sabor. Vinho é vinho, a qualidade era de somenos importância para um sujeito na sua condição, só queria relaxar o corpo e anestesiar-se das amarguras da vida.

O Demónio voltou a espicaçá-lo:

 

«O Manel da Tasca do Quelho mantem a mulher com a rédea curta. A Anastácia obedece sem regatear, ao passo de que a tua está sempre a protestar. Protesta por tu gastares dinheiro na taverna. Que tem ela a ver com o dinheiro que ganhas com o teu suor?

Abre os olhos Vitório! Se tu lhe dás pouco dinheiro, como é que  entra boa comida nesta casa? O queijo ela te dá ao pequeno-almoço é caro, tal como o pão com passas de que tu tanto gostas, assim como o toucinho fumado.»

 

— Ela trabalha nas limpezas em casa duma madame, lá para os lados do Ribeiro Seco.

 

«Disse-to ela, mas tu nunca te importaste em saber, se era verdade

 

O sino da aldeia tocou, Vitório olhou de relance o relógio pendurado na parede da cozinha. Tinha a vista turva, o ponteiro oscilava entre as sete e as oito, ficou na dúvida. De qualquer das formas, a Laila tinha obrigação de já ter chegado.

 

«Já reparaste de que a Laila ultimamente anda a vestir-se melhor? Não te faz pensar em nada? Até os teus amigos sabem de como as mulheres são manhosas. Tens o exemplo do Luís da Ranha, que não sabe que a mulher tem um caso com o dono da funerária.»

 

Não! A Laila não será mulher para isso! Até porque tenho amigos que me avisavam.

 

«Claro que avisavam, tal como avisaram o Luís da Ranha. Tu sabes de que a Leila não é mulher de se deitar fora e gosta de se exibir na frente dos homens. Ou será que nunca reparaste?»

 

— Admito que ela é jeitosa mas daí…isso não, porque eu matava-a! Não aceito ser corno  manso como o Luís da Ranha! Matava a cadela!

 

«Não achas estranho a Laila estar a demorar tanto? Se Laila te andar a enganar, podes crer que ninguém to dirá, mas rir-se-ão nas tuas costas. Não permitas isso!»

 

— Cala-te maldito! Eu não acredito que ela me engane! Mas se for verdade, podes crer de que a mato!

 

Vitório de repente calou-se, o ruído da porta a abrir-se e a aproximação de uns passos ligeiros não o enganavam. Laila entrara em casa.

— Por onde andaste, minha cabra? — Atirou furioso.

Laila pousou calmamente o saco das compras sobre a bancada, antes de protestar::

— Outra vez bêbado, Vitório? Não tens juízo, valha-me Deus!

Vitório explodiu:

— Por que é que só chegaste agora?

— Por causa da teimosia da Dona Beatriz. Hoje, deu-lhe para não querer a sopa, por isso  cheguei mais tarde.

— Julgas que eu sou lorpa? Disseste-me que trabalhavas em limpezas e agora vens-me com uma história diferente?

— Eu não te avisei de que à Sexta passava a cuidar da Dona Beatriz? Tenho que apanhar todos os trabalhos que me aparecem, porque se contasse  apenas com o teu dinheiro, passámos fome!

— Andas-me a pôr os cornos?

— Que disparate é que tu estás para aí a dizer, homem? Cala-te!

— Tu não sabes do que eu sou capaz!

— Sabes que mais? Vai-te deitar um bocado enquanto preparo o jantar.

Mas o Demónio decidiu sair vencedor naquele fim de tarde.

 

«És um frouxo! Vais deixar que ela continue a enganar-te? Não fazes nada, corno?»

 

— Não sou frouxo, nem admito ser corno!

— Eu não disse nada Vitório. Vê se te acalmas, homem!

 — Tu queres que eu me acalme? Queres? Então, já vais ver!

 

A raiva atravessou-lhe os olhos e a desconfiança feita certeza deu-lhe força suficiente para ir  atrás da porta e pegar na caçadeira que mantinha sempre carregada, para no caso de ser assaltado.

Laila olhou-o com surpresa que de imediato se transformou em terror:

— Estás louco Vitório? O que é que tens na cabeça?

— Ainda perguntas?

— Desvia a arma para lá, Vitório! Estás louco?!

— Estou louco, sim! Louco para acabar contigo, porque tenho vergonha na cara!

Laila não teve como escapar, o primeiro disparo atingiu-a no peito, o segundo estoirou-lhe o rosto.

Depois disto, Vitório sentiu um estranho estremecimento dentro de si e de seguida, um forte sopro saiu-lhe pela boca. Ficou com a sensação de que o Demónio que há muito se habitava nas suas entranhas acabara de o abandonar.

Aliviado, baixou a arma e de cabeça vazia e olhos inquietos pasmou a observar um lago vermelho a alastrar-se pelo chão e a entranhar-se nas ranhuras dos mosaicos, como água a inundar as valas que ele abria na estufa do Sôr Maurício. Na brancura da parede os arabescos vermelhos pareciam serpentes a deslizarem indolentemente por ela abaixo. Os salpicos lembraram-lhe as papoulas do campo varridas pelo vento.

De um momento para o outro, o mundo pintara-se de vermelho. Havia vermelho no chão, nas paredes, nas botas, na espingarda, nas mãos…

Apavorado, largou a arma e arrastou os pés em direção ao quarto, convencido de que tudo aquilo fazia parte dum pesadelo, e que bastava passar um pouco pelas brasas, para tudo voltar ao normal.
Até porque Laila estava a chegar e ele não queria que ela o visse naquele estado.

 

Mas Vitório não saiu mais do pesadelo, e na manhã seguinte a aldeia acordou em alvoroço perante tamanha barbárie. Os vizinhos e os amigos ficaram chocados com a  atitude macabra de Vitório. Deitar-se a dormir após matar a mulher e comentavam, consternados:

 

«Eles davam-se bem, nada fazia prever esta tragédia.»

«Não se faz isto: matar a mulher e deitar-se a dormir.»
«Ainda ontem lhe dei uma garrafa de vinho, se eu adivinhasse...»

«A Laila queixava-se que ele bebia muito, mas que não a tratava mal.»  

«Coitada, ainda ontem esteve a cuidar da Dona Beatriz.»  

«De manhã engomou-me uma carga de roupa, só visto!»

«Tenho pena, porque eram ambos boas pessoas»

«Parece obra do Diabo!»

 

Maria de Fátima Gouveia

  

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