NATAL COM NEVE É MÁGICO!
— Mana, gostava de
voltar a ser criança.
— Para usar fraldas?
Descanse de que não faltará muito.
— A mana com a idade,
fez-se uma amêndoa amarga.
— Uma amêndoa amarga?
— Sim. Seca, enrugada
e intragável.
— Já olhou para a sua
cara? Parece um papel amachucado e o seu corpo, balofo e gasto, faz-me lembrar um
pneu careca.
— A mana consegue
falar sem me arreganhar os dentes?
— Sim, e para que
queria a mana voltar a ser criança?
— Para sonhar.
— Para sonhar basta fechar
os olhos e deixar-se dormir.
— Eu refiro-me a
sonhar acordada.
— Contente-se em
acordar do sonho, que já é uma sorte!
— Acaso, nós não
temos uma vida triste? Somos dois monos à espera que alguém nos carregue para o
cemitério.
— Só se for a mana.
Tão depressa não me apanham lá, a não ser para lhe pôr flores na campa e será
pelo meu pé!
— Que simpática…
Cuide-se, não vá acontecer o contrário.
— Era da maneira que
me livrava de si.
— É muito rezingona!
Quando era nova era a mais alegre, embora eu fosse a mais bonita.
— Hahaha!!! Nessa
altura já tinha problemas de visão.
— Chega! Já percebi
que hoje acordou apostada em me estragar o dia!
— Não será o
contrário? Não há dia nenhum que não me encha a cabeça de lamentos. Ou por lhe
doer o joelho ou o ombro, por não ver o filho há muito tempo, por estar frio,
por estar calor…Livra!
— Parece uma hiena!
Juro que nunca mais abro a boca!
— A mana que passa a
vida a encomendar a alma a Deus, não sabe de que é pecado mentir?
— O que é que quer
dizer com isso?
— Sempre que consulta
o médico, diz que não consegue manter a boca fechada.
— Para o que eu
estava destinada…! Valha-me Deus!
— Dê antes, graças à santa
da irmã que a atura. Agora, deu-lhe para chorar?
— Porquê? Também estou
proibida de chorar?
— Não seja tonta,
mana! Só quero que não seja negativa.
— Está tanto frio,
será que vai nevar?
— Se nevar,
correremos para a rua para fazer bonecos de neve!
— Que disparate!
Tenho lá idade para brincadeiras!
— Não seja enfadonha!
Venha à janela ver, a figurinha da frente para meter o carro na garagem, já
bateu duas vezes no muro.
— Não me faça rir!
Estou aperreada com estas malditas dores nas pernas e a mana a querer que eu vá
bisbilhotar os vizinhos.
— Ó, ó…Não é que
começou agora a nevar?
— Pode lá ser?! Olhe
que tem razão, está mesmo a nevar. Há vinte anos que não víamos nevar.
— Um Natal com neve é
mágico.
— São apenas uns
floquitos.
— Porquê, queria uma
tempestade?
— Não mana, sabe o
que eu queria? Que o Natal não existisse!
— Irra! Lá vem o seu
mau feitio!
— Odeio o Natal!
— Diz isso todos os
anos. Lembre-se de que me tem a mim, mas um dia pode não ter.
— Antes isso do que
pior!
— Está a referir-se a
eu poder ir à sua frente? Azar o seu, piegas com é, não aguentava muito tempo
no Depósito dos Mortos-Vivos com o
esqueleto pousado frente à televisão o dia todo, a ouvir tossir e escarrar à
sua volta.
— Que horror! A mana
é vingativa e… nem sei o que mais!
— Isso! Solte essa
raiva toda, pode ser que amanse.
— A culpa é do
Afonso, de eu estar nesta situação!
— Já estava à espera
disso! Tinha de falar no fugitivo!
— A mana nunca foi
casada, por isso não sabe o que significa ser trocada por outra! Ainda se ela
valesse alguma coisa…!
— Mas valia para ele.
Pena, a mana não ter aceitado o pedido de casamento do Matias. Era um bom
homem, com dinheiro e com urgência em morrer.
— Valia-me de muito!
Passava de separada a casada e num ano ficava viúva.
— Melhor, era
impossível. Morrendo o bicho, ficava-lhe o chiqueiro.
— Pois, mas a mana
esquece-se de que o bicho era feio e cheirava mal da boca?
— Veja, os flocos de
neve continuam a cair. Natal com neve é mágico!
— Repito, não gosto
do Natal!
— Dos presentes, também
não gosta?
— Depende, se me
calhar uns calções ridículos como os do ano passado, dispenso.
— Ingrata! Mas eu
perdoo-lhe. Este ano prometo que vai receber um presente bem melhor.
— Posso saber o que
é?
— Não, para não
estragar a surpresa. Aliás, são dois presentes.
— Mau! O que é que
lhe deu, para este ano ser tão generosa?
— Porque, embora
julgue que não, eu gosto muito de si.
— Sei. Eu também
gosto da mana. Mas, não me pode dar uma pista do que comprou para mim? Como tem
feito nos anos anteriores?
— Posso, até porque
raramente acerta. Espere, disse pista?
— Disse.
— Nesse caso, está
morno.
— Que chata! Assim
ainda fico mais curiosa e de cabeça no ar.
— Disse No Ar? Começou a ficar quente.
— Pista e No Ar Será que…e avião, mana? E avião?
— Está quente, muito quente!
Sua tonta, porque é que se pôs a chorar?
— Nada, é por ver a
neve a cair. Tem razão ao dizer de que um Natal com neve é mágico.
Maria de Fátima
Gouveia
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