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Castanheira de Pera, Portugal
"O Meio-termo é a virtude dos mentecaptos lobrigando a sua incapacidade de tocar o excelso".

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014















            NATAL COM NEVE É MÁGICO!

— Mana, gostava de voltar a ser criança.
— Para usar fraldas? Descanse de que não faltará muito.
— A mana com a idade, fez-se uma amêndoa amarga.
— Uma amêndoa amarga?
— Sim. Seca, enrugada e intragável.
— Já olhou para a sua cara? Parece um papel amachucado e o seu corpo, balofo e gasto, faz-me lembrar um pneu careca.
— A mana consegue falar sem me arreganhar os dentes?  
— Sim, e para que queria a mana voltar a ser criança? 
— Para sonhar.
— Para sonhar basta fechar os olhos e deixar-se dormir.
— Eu refiro-me a sonhar acordada.
— Contente-se em acordar do sonho, que já é uma sorte!
— Acaso, nós não temos uma vida triste? Somos dois monos à espera que alguém nos carregue para o cemitério.
— Só se for a mana. Tão depressa não me apanham lá, a não ser para lhe pôr flores na campa e será pelo meu pé!
— Que simpática… Cuide-se, não vá acontecer o contrário.
— Era da maneira que me livrava de si.
— É muito rezingona! Quando era nova era a mais alegre, embora eu fosse a mais bonita.
— Hahaha!!! Nessa altura já tinha problemas de visão.
— Chega! Já percebi que hoje acordou apostada em me estragar o dia!
— Não será o contrário? Não há dia nenhum que não me encha a cabeça de lamentos. Ou por lhe doer o joelho ou o ombro, por não ver o filho há muito tempo, por estar frio, por estar calor…Livra!       
— Parece uma hiena! Juro que nunca mais abro a boca!
— A mana que passa a vida a encomendar a alma a Deus, não sabe de que é pecado mentir?
— O que é que quer dizer com isso?
— Sempre que consulta o médico, diz que não consegue manter a boca fechada.
— Para o que eu estava destinada…! Valha-me Deus!
— Dê antes, graças à santa da irmã que a atura. Agora, deu-lhe para chorar?
— Porquê? Também estou proibida de chorar?    
— Não seja tonta, mana! Só quero que não seja negativa.
— Está tanto frio, será que vai nevar?
— Se nevar, correremos para a rua para fazer bonecos de neve!
— Que disparate! Tenho lá idade para brincadeiras!
— Não seja enfadonha! Venha à janela ver, a figurinha da frente para meter o carro na garagem, já bateu duas vezes no muro.
— Não me faça rir! Estou aperreada com estas malditas dores nas pernas e a mana a querer que eu vá bisbilhotar os vizinhos. 
— Ó, ó…Não é que começou agora a nevar?
— Pode lá ser?! Olhe que tem razão, está mesmo a nevar. Há vinte anos que não víamos nevar.
— Um Natal com neve é mágico.
— São apenas uns floquitos.
— Porquê, queria uma tempestade? 
— Não mana, sabe o que eu queria? Que o Natal não existisse!
— Irra! Lá vem o seu mau feitio!
— Odeio o Natal!
— Diz isso todos os anos. Lembre-se de que me tem a mim, mas um dia pode não ter.
— Antes isso do que pior!  
— Está a referir-se a eu poder ir à sua frente? Azar o seu, piegas com é, não aguentava muito tempo no Depósito dos Mortos-Vivos com o esqueleto pousado frente à televisão o dia todo, a ouvir tossir e escarrar à sua volta.     
— Que horror! A mana é vingativa e… nem sei o que mais!
— Isso! Solte essa raiva toda, pode ser que amanse.
— A culpa é do Afonso, de eu estar nesta situação!
— Já estava à espera disso! Tinha de falar no fugitivo!
— A mana nunca foi casada, por isso não sabe o que significa ser trocada por outra! Ainda se ela valesse alguma coisa…!
— Mas valia para ele. Pena, a mana não ter aceitado o pedido de casamento do Matias. Era um bom homem, com dinheiro e com urgência em morrer.
— Valia-me de muito! Passava de separada a casada e num ano ficava viúva.
— Melhor, era impossível. Morrendo o bicho, ficava-lhe o chiqueiro.
— Pois, mas a mana esquece-se de que o bicho era feio e cheirava mal da boca?    
— Veja, os flocos de neve continuam a cair. Natal com neve é mágico!
— Repito, não gosto do Natal!
— Dos presentes, também não gosta?
— Depende, se me calhar uns calções ridículos como os do ano passado, dispenso.
— Ingrata! Mas eu perdoo-lhe. Este ano prometo que vai receber um presente bem melhor.
— Posso saber o que é?
— Não, para não estragar a surpresa. Aliás, são dois presentes.
— Mau! O que é que lhe deu, para este ano ser tão generosa?
— Porque, embora julgue que não, eu gosto muito de si.
— Sei. Eu também gosto da mana. Mas, não me pode dar uma pista do que comprou para mim? Como tem feito nos anos anteriores?
— Posso, até porque raramente acerta. Espere, disse pista?
— Disse.
— Nesse caso, está morno.
— Que chata! Assim ainda fico mais curiosa e de cabeça no ar.
— Disse No Ar? Começou a ficar quente.
Pista e No Ar Será que…e avião, mana? E avião?
— Está quente, muito quente! Sua tonta, porque é que se pôs a chorar?
— Nada, é por ver a neve a cair. Tem razão ao dizer de que um Natal com neve é mágico.


Maria de Fátima Gouveia

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